Política Fiscal restritiva: a drenagem do orçamento público para o rentismo usurário
- Luísa Canazarro

- 10 de out.
- 5 min de leitura
A mudança de paradigma entre as relações Estado-Sociedade imposta pela agenda neoliberal, por meio do Consenso de Washington¹ e materializada pelo processo de financeirização, permitiu a penetração da lógica financeira em espaços de valorização mercantil não-financeira. Com isso, há uma inversão da relação causal entre gastos públicos e o crescimento econômico, ou seja, os gastos públicos deixam de serem vistos como geradores de crescimento, que no campo teórico é explicado pelo efeito multiplicador de gasto keynesiano e passam a estar condicionados ao crescimento da economia, principalmente à carga tributária.

Primeiramente, para compreender como a política fiscal restritiva no caso brasileiro recente é preciso comentar sobre a Emenda Constitucional 95 de 2016, a emenda que institui o Teto de Gastos durante o governo Temer. O teto de gastos determina que os gastos primários do governo, isto é, não contabilizando os gastos exorbitantes com o pagamento de juros da dívida pública, deveriam ser congelados por um período de duas décadas sendo realizada somente correção através do aumento de preços. Como já era de se esperar, o efeito que o teto de gastos surtiu na economia foi desastroso, gerando cortes de gastos e sucateamento de políticas públicas como saúde, educação, que possuem pisos mínimos de gastos, essa política restritiva combinada com a liberalização da economia brasileira feita através do tripé macroeconômico² tornou uma missão impossível realizar planejamento de políticas macroeconômicas de longo prazo e sustentáveis.
Não só o planejamento de longo prazo fica insustentável, mas também os efeitos do teto de gastos, basta observar que logo criaram diversas exceções, sobretudo no período da pandemia de covid-19 e mais para frente esse teto vem a ser substituído no ano de 2022 pela Nova Regra Fiscal que permitiu o crescimento dos gastos do governo acima da inflação, podendo ter um bônus caso o governo consiga um superávit primário ー um dos componentes do tripé macroeconômico. Entretanto, mesmo com a substituição do teto de gastos pela nova regra fiscal e, posteriormente pelo Novo Arcabouço Fiscal (NAF), em agosto de 2023, do então ministro da fazenda Fernando Haddad, o caráter restritivo e cíclico da política fiscal permanece, mesmo que o NAF traga alguns pequenos avanços em relação ao teto de gastos.
O Novo Arcabouço Fiscal, na visão de Fernando Haddad, permite voltar para o paradigma político e econômico a credibilidade da dívida pública perante o mercado financeiro e além disso, o pagamento da dívida social colocada na campanha eleitoral de 2022. Em suma, para Haddad a nova regra fiscal materializada pelo NAF equilibrará as responsabilidades fiscal e social, porém na economia brasileira atual a adoção do NAF pode, provavelmente irá, acarretar uma espiral de baixo crescimento econômico, afetando como sempre as camadas mais vulneráveis da sociedade.
A parte mais vulnerável da população brasileira segue sendo a mais afetada à medida que o NAF contém parâmetros limitantes do gasto social, reproduzindo alguns aspectos do teto de gastos, como por exemplo a retirada de pisos mínimos de várias despesas previstas na Constituição Federal de 1988: o salário mínimo para a aposentadoria, saúde e educação, caso essas despesas cresçam de acordo com a taxa de crescimento das receitas tributárias ou mais.
Todavia, como mencionado anteriormente o NAF carrega algumas melhorias em relação ao teto de gastos, enquanto o teto congelava o limite de gastos do governo federal em termos reais, o NAF propõe um limite, ainda que menor, que acompanha a arrecadação do governo, mesmo com a dinâmica de tentar fazer com que as receita sejam sempre maiores que a despesa, o NAF coloca uma barreira à subordinação extrema dos gastos federais às receitas.
Analisando o caso do Brasil, o que pode ser observado é que a política fiscal, agora gerida com base no Novo Arcabouço Fiscal, ao invés de equilibrar as responsabilidades fiscal e social, reforça as desigualdades sociais ao priorizar apenas a tão falada responsabilidade fiscal ー institucionalizada por meio da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) que altera a organização do orçamento público, estabelecendo novos parâmetros para as despesas públicas dos entes subnacionais e a inclusão das metas primárias, reforçando políticas de austeridade fiscal ー exigida pela classe rentista financeira. O orçamento público, portanto, é drenado pelo rentismo financeiro usurário ao invés de auxiliar o Estado a cumprir os deveres constitucionais para com a sociedade. Além disso, no plano político-institucional o discurso neoliberal faz um verdadeiro ataque de aspecto ideológico contra o Estado de bem-estar social, exercendo uma política manipuladora que convence a população de que reduzir a carga tributária sobre os mais ricos é preciso para a economia crescer.
Nesse cenário de política fiscal restritiva, o Banco Central do Brasil permanece praticando uma política monetária de cunho contracionista pautada na ideia de expectativas de inflação desancoradas, o que só gera prejuízos para o setor produtivo da economia e, principalmente, para a classe trabalhadora. Ademais, a combinação de política fiscal restritiva com política monetária contracionista torna-se um mecanismo que reforça a financeirização da economia brasileira e a captura do estado pelo capital financeiro, acirrando o conflito distributivo ao transferir uma parcela crescente do PIB para o setor financeiro usurário ao invés de gerar novos e constantes investimentos no setor produtivo, crucial para aumentar a produtividade da economia e para o desenvolvimento econômico de longo prazo, e em áreas sociais que são essenciais para o desenvolvimento socioeconômico.
Por fim, o rentismo usurário brasileiro como apontado por Bruno (2021) e Bruno & Caffe (2017) é consolidado por um regime fiscal que atua como uma âncora ao impedir o rompimento com o padrão de subdesenvolvimento, solidificando as bases para um modelo econômico estruturalmente baseado na dívida pública e contrário à transformação econômica.
¹ Plano desenvolvido pelo FMI, Banco Mundial e o Tesouro dos EUA no ano de 1989 que continha um conjunto de prescrições de políticas econômicas de cunho neoliberal que estabeleceu diretrizes para países, principalmente da América Latina, desenvolverem-se. Dentre as diretrizes constavam políticas de privatizações, nova gestão dos gastos públicos para uma “disciplina fiscal”, reforma tributária entre outras. Em suma, o Consenso representa uma análise neoliberal para os problemas econômicos dos países latino-americanos.
² Constituído por metas de inflação, metas fiscais (superávit primário) e câmbio flutuante.
Referências:
BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. Quatro tetos e um funeral: o novo arcabouço/regra fiscal e o projeto social-liberal do ministro Haddad. Campinas: Instituto de Economia, Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON), Nota do Cecon, n. 21, abr. 2023. Disponível em: https://www.economia.unicamp.br/noticias/quatro-tetos-e-um-funeral-o-novo-arcaboucoregra-fiscal-e-o-projeto-social-liberal-do-ministro-haddad. Acesso em: 8 out. 2025.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm. Acesso em: 8 out. 2025.
BRUNO, Miguel. Financeirização, neoliberalismo e captura do Estado: uma tríade antidesenvolvimento do Brasil. Monitor Mercantil, Rio de Janeiro, 10 jul. 2024. Opinião. Disponível em: https://monitormercantil.com.br/financeirizacao-neoliberalismo-e-captura-do-estado-uma-triade-antidesenvolvimento-do-brasil/. Acesso em: 8 out. 2025.




