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O dólar digital e a internacionalização da política monetária norte-americana

Uma moeda digital (CBDC) é uma nova forma de representar a moeda já emitida pela autoridade monetária nacional, ou seja, integra a política monetária do país e conta com a garantia decorrente dessa política (Banco Central do Brasil, 2024). A despeito disso, as moedas digitais, por sua vez, surgiram para modernizar os sistemas de pagamento, tornando-os mais rápidos, seguros e eficientes — em resposta à digitalização da economia e aos avanços das criptomoedas privadas. Já as stablecoins são criptoativos lastreados, cujo valor busca manter a paridade estável com um ativo no mundo real (frequentemente o dólar), funcionando como um dinheiro digital estável dentro e fora das plataformas de negociação — na prática, pagamentos mais simples, rápidos e com menos etapas. Sendo assim, na “era digital”, um eventual “dólar digital” ampliaria ou mudaria o alcance internacional das decisões do Fed — tornando o poder do dólar mais presente nos pagamentos cotidianos e nas trocas entre países, ou diluindo esse controle?


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O dólar se mantém como a principal posição em reservas cambiais, comércio e dívidas globais, apoiado pela profundidade de seus mercados e na credibilidade institucional dos Estados Unidos. A digitalização financeira, por meio de CBDCs e stablecoins, começou a reconfigurar a infraestrutura de pagamentos e liquidação, levantando a questão de como um eventual dólar digital afetaria a projeção internacional da política monetária do Fed (Federal Reserve, Banco Central dos Estados Unidos).

Assume-se uma hipótese de que, no curto/médio prazo, um USD-CBDC reforça a centralidade do dólar por efeitos de rede e menor fricção nos pagamentos, mesmo carregando riscos de remoção de intermediários bancários e possíveis corridas para um dólar digital em cenários de estresse. Mas quais fundamentos — efeitos de rede, profundidade de mercado, institucionalidade e infraestrutura de liquidação — explicam a persistência da dominância do dólar no sistema monetário internacional?

Durante a maior parte do século 20, a influência dominante do dólar norte-americano foi sustentada pelo tamanho e pela força de sua economia: sua estabilidade, abertura ao comércio e aos fluxos de capitais, além de fortes direitos de propriedade e do Estado democrático de direito. Como resultado, a liquidez dos seus mercados financeiros é incomparável, além da grande oferta de ativos dolarizados extremamente “seguros”. O aumento das tarifas comerciais, acentuado pela incerteza política, junto da influência indireta da guerra Rússia-Ucrânia, faz com que o papel do dólar norte-americano receba uma atenção renovada este ano. Ele também desempenha um papel descomunal em áreas de inovação financeira, como ser âncora dominante para stablecoins (IMF World Economic Outlook database, 2025).

Uma das funções fundamentais da moeda é servir como reserva de valor para garantir poder de compra no futuro. Utilizar dólares norte-americanos como reserva de valor em suas reservas cambiais demonstra uma medida de confiança global pela estabilidade da sua economia. O dólar norte-americano representou 58% das reservas cambiais oficiais globais divulgadas em 2024, e superava bastante todas as outras moedas: incluindo o euro (20%), iene japonês (6%), libra esterlina (5%) e o renmibi chinês (2%) (IMF COFER, 2025).

A maior parte das reservas oficiais em dólares norte-americanos é mantida em forma de títulos do tesouro dos Estados Unidos, que são muito procurados por investidores estrangeiros oficiais e privados. No primeiro trimestre de 2025, cerca de US$ 9 trilhões de dólares ou 32% dos títulos negociáveis do tesouro em circulação eram vindos de investidores estrangeiros, tanto oficiais quanto privados, enquanto 55% eram de investidores domésticos privados e 13% pelo sistema do Federal Reserve (Federal Reserve Board; Board staff calculations, 2025). Além disso, houve um aumento no uso de stablecoins ancoradas ao dólar, que pareceu ser usada como alternativa às norte-americanas em alguns países em desenvolvimento. Em abril de 2025, a capitalização total desse mercado em dólar atingiu cerca de US$ 220 bilhões (Llama Corp, DeFiLlama, 2025).

O dólar norte-americano também é dominante nas transações comerciais internacionais e nos mercados financeiros. Uma estimativa da participação do dólar, de longe a moeda mais utilizada no comércio global, demonstrou que no período de 1999 a 2019, o dólar representou 96% do faturamento comercial nas Américas, 74% na região da Ásia-Pacífico e 79% no resto do mundo. (IMF Direction of Trade; Banco Central da República da China, 2020). A participação do dólar norte-americano nos pagamentos internacionais é cerca de 50%. Se levarmos em consideração a zona do euro, a participação aumenta para cerca de 60% (SWFIT, Bloomerang Finance LP, 2020). A emissão de dívidas em moeda estrangeira por empresas de países com moedas diferentes das suas de origem é, em grande parte, denominada em dólar norte-americano. As parcelas das dívidas em dólar têm se mantido em torno de 60% desde 2010, bem à frente do euro, com 26% em participações (LSEG Data & Analytics, 2025).

            Portanto, o uso do dólar globalmente nas últimas duas décadas sugere um papel dominante e relativamente estável. Mas, se o uso global do dólar é grande por conta de sua rede e infraestrutura, um CDBC pode reduzir fricções e consolidar essa posição?

            Os atritos entre pagamentos transnacionais surgem porque o acesso ao sistema de pagamentos que liquidam em moeda do banco central doméstico é tipicamente limitado a suas respectivas instituições financeiras. Suas políticas de acesso abordam questões de quem pode deter, usar e transformar a moeda do banco central, em particular, se ou em que condições a moeda do banco central está disponível para não residentes e suas instituições financeiras. Expandir o acesso direto ao dólar digital exigiria mudanças legislativas, especialmente para instituições não bancárias; é uma escolha política que não é exclusiva da decisão de emitir um CBDC. Além disso, as decisões relativas à supervisão de bancos estrangeiros ou provedores de sistema de pagamentos não bancários, como o PayPal, precisariam ser tomadas com cuidado para mitigar risco futuro.

Quanto ao papel e influência internacional do dólar, um dólar digital norte-americano amplamente acessível à margem aumentará provavelmente o seu uso no contexto mundial. Uma CBDC que pudesse ser detida por residentes estrangeiros ofereceria um meio de deter dólares sem a necessidade de ter notas físicas com um potencial de perda ou dano, uma possível interferência das autoridades locais, uma falta de seguro para depósito ou linhas de crédito emergenciais para os bancos emissores. Entretanto, o mecanismo de distribuição seria crucial. Se os dólares digitais estivessem disponíveis apenas por meio de bancos norte-americanos, o acesso a não residentes poderia ser limitado pelas políticas de acesso ao sistema bancário doméstico. No geral, quanto mais amplamente um dólar digital fosse projetado e disponibilizado, maior seria o cenário para que este ganhasse ainda mais popularidade como um meio de transação, unidade de conta e reserva de valor.

Uma alternativa para expandir o acesso ao dólar digital é aumentar a eficiência por meio da interoperabilidade entre os sistemas de pagamentos: ou seja, se comunicar e trabalhar para trocar informações de forma eficaz em todas as instâncias. Em contraste com as decisões de política de acesso, as escolhas sobre interoperabilidade podem exigir uma coordenação técnica com o Estado para julgar casos que envolvem elementos internacionais. Ainda assim, é necessário pensar na interoperabilidade como uma ferramenta para apoiar a acessibilidade, não apenas uma questão técnica (Lawson e Herrada, 2022). Se for capaz de realizar transações sem problemas, um dólar digital altamente interoperável poderá fortalecer sua posição como meio de troca, e por consequência, a margem da necessidade do dólar como reserva de valor, que também poderia ser aumentada.

Os limites do saldo da conta ou de transação provavelmente teriam um impacto significativo no apelo internacional ao uso de uma CBDC. Se os limites forem muito baixos para pagamentos interbancários e entre empresas, podem surgir atritos na liquidez, o que poderia afetar negativamente a estabilidade global no caso de uso significativo de um dólar digital. Os limites de conta também poderiam impor restrições aos fluxos de transação e, portanto, diminuir a necessidade de uma CBDC norte-americana como meio de transação. No entanto, dada a sua estabilidade nos últimos 20 anos, tais limites provavelmente não afetariam diretamente o apelo de ativos dolarizados como reserva de valor.

Enquanto na visão de um estrangeiro, uma CBDC for vista como mais atraente do que a sua própria moeda, será mais atraente para os estrangeiros terem esta como reserva de valor. Quanto maior for a taxa de retorno esperada de determinado ativo, maior será sua demanda. Nesse contexto de moedas digitais, a demanda seria maior para uma CBDC pagando uma taxa de remuneração mais alta. À margem, pagamentos positivos de juros, se permitidos, podem aumentar o apelo dessa moeda. E, portanto, o uso do dólar, embora os pagamentos de juros negativos, se forem permitidos, possam ter o efeito oposto.

A discussão acima deixa de lado ações de outras jurisdições (autoridades) e atores do setor privado. Apesar disso, outras autoridades também estão considerando CBDCs e novos ativos financeiros, como stablecoins que estão surgindo a um fluxo intenso, assim, outras jurisdições podem mudar suas políticas em relação a esses ativos. Uma série de desenvolvimentos em andamento, tanto no setor público quanto privado, que não envolvem a criação de uma CBDC, pode reduzir ou eliminar fricções atualmente observadas nos pagamentos transnacionais, gerando benefícios semelhantes aos previstos para as moedas digitais. Essas iniciativas também podem ter impactos sobre a influência do dólar.

O empenho destinado para enfrentar os desafios dos pagamentos transnacionais do setor privado inclui iniciativas baseadas em metodologias de pagamentos já existentes, bem como projetos baseados em tecnologias de contabilidade distribuída (distributed ledger technology/ DLT) - um sistema digital para registrar e sincronizar dados entre vários locais, países ou instituições. Ao invés de depender de uma autoridade principal, uma DLT utiliza uma rede descentralizada onde cada participante mantém uma cópia idêntica do seu registro compartilhado, no qual todas as entradas são protegidas por criptografia, garantindo a integridade e imutabilidade dos dados. Esse sistema inclui ativos de criptografia sem lastro e stablecoins. Esses ativos trocados na DLT não dependeriam dos sistemas de pagamento existentes, em particular as stablecoins, poderiam correr a demanda pelas formas tradicionais de dinheiro existentes, incluindo o dólar como reserva de valor e meio de transação.

A probabilidade desse resultado acontecer depende da capacidade das stablecoins de serem adequadamente projetadas e regulamentadas para alcançar um nível de confiança suficiente do usuário para manter sua paridade em relação aos ativos do mundo real. Taxas baixas e outros incentivos para usar stablecoins podem levar os indivíduos a manterem o uso das stablecoins em detrimento dos dólares, junto dos custos de troca que podem manter os usuários em stablecoins de forma definitiva, mesmo que uma moeda digital superior seja emitida. Porém, a demanda por stablecoins em dólar pode fortalecer ou enfraquecer o papel do dólar, dependendo se a origem da demanda é vinda de ativos dolarizados ou moeda estrangeira. Por outro lado, espera-se que o surgimento e o crescimento de uma ou mais stablecoins lastreadas em moedas diferentes do dólar aumentem a demanda por ativos nessas moedas, provavelmente às custas da demanda por ativos em dólar.

A maior e mais notável iniciativa dos setores oficiais é o roteiro transnacional do G20, desenvolvido junto pelo Conselho de Estabilidade Financeira e pelo Comitê de Pagamentos e Infraestruturas de Mercado, que busca enfrentar desafios e tentar reduzir as fricções nesse tipo de pagamento (FSB, 2020). A criação de uma moeda digital é apenas uma das 19 opções apresentadas no roteiro. Muitas das outras áreas de foco são melhorias nos sistemas de pagamentos existentes, o que poderia fornecer benefícios semelhantes a um CBDC mais cedo e com menor custo.

Se um ou mais países grandes introduzissem uma moeda digital do banco central internacionalmente que fosse atraente em alguns aspectos, como custo, velocidade e experiência do usuário – a necessidade dessas moedas poderia ganhar pelo menos como meio de transação, à custa do dólar, se não houvesse uma opção de dólar como equivalente. Outros fatores que podem contribuir para o ganho de força de uma CBDC estrangeira são a interoperabilidade, remuneração mais favorável, requisitos de identificação menos rigorosos, limites de conta ou acessos mais amplos, sendo superiores aos requisitos para se obter um dólar digital. Como mencionado anteriormente, a influência internacional, assim como o papel do dólar como unidade de conta e reserva de valor, seria dificilmente afetada mundialmente, salvo na ausência de grandes mudanças no eixo geopolítico mundial exclusivamente, que são separadas da emissão de uma moeda digital.

Uma mudança para outra moeda como reserva de valor até poderia ocorrer: diminuindo o papel do dólar, mas tal mudança existe a disponibilidade de ativos atraentes, assim como uma liquidez de mercado atrativa, ao invés de soluções baseadas em tecnologia. Diferenças nas políticas de privacidade também podem afetar a influência mundial do dólar digital: se as autoridades estrangeiras adotassem regulamentações de privacidade mais rígidas que impedissem usuários de manter dólares norte-americanos. A remuneração das moedas digitais das economias desenvolvidas também pode afetar o dólar como meio de pagamento mais utilizado, assim como reserva de valor.

Se o impacto de um dólar digital depende do seu cenário doméstico, como essas escolhas se projetariam em um cenário internacional onde múltiplos bancos centrais desenvolvem suas próprias moedas digitais e arquiteturas de pagamento interligadas?

O impacto de um dólar digital, projetado em um cenário internacional com CBDCs e arquiteturas de pagamento interligadas, dependeria fundamentalmente de como as escolhas de design doméstico se articulam com a cooperação internacional em termos de acesso e interoperabilidade.

O ponto de partida inicial é avaliar os pagamentos internacionais com CBDCs que podem ser imaginados de duas formas diferentes, mas fundamentais: a primeira seria com o uso internacional direto, com uma moeda digital de determinada jurisdição disponível para qualquer pessoa, dentro ou fora dessa jurisdição, sem a coordenação entre os bancos centrais emissores. A segunda forma seria a cooperação entre os bancos centrais, na qual seriam estabelecidos acordos de acesso e liquidação entre diferentes moedas digitais, seja para varejo e/ou atacado, baseados numa forte cooperação entre bancos centrais. No primeiro cenário, o uso internacional das moedas digitais seria praticamente irrestrito — poderia ser desenhada para não impor limites quanto à onde, ou por quem, ela poderia ser utilizada. Se o projeto permitir pagamentos anônimos, tal como acontece com o dinheiro físico, a moeda seria acessível a residentes estrangeiros. Porém, na prática, poucos bancos centrais garantem a totalidade de sistemas completamente anônimos. Alternativamente, e diferente do dinheiro em espécie, uma CBDC poderia ser desenhada de modo a restringir o uso transnacional, conforme regras impostas pelo banco central emissor.

No segundo cenário, a coordenação e cooperação entre bancos centrais levariam a soluções menos desafiadoras. Isso pode ocorrer de duas maneiras: a primeira forma seria permitir que estrangeiros de jurisdições parceiras acessem a solução doméstica da moeda digital; ou com a segunda forma: acessar por meio de arranjos multi-CBDC — sistemas conjuntos e colaborativos desenvolvidos por múltiplos bancos centrais para permitir que suas respectivas CBDCs interajam entre si, facilitando pagamentos transfronteiriços mais eficientes e baratos.

Esses arranjos são estruturas de desenhos coordenados que abrangem aspectos tecnológicos, de mercado e legais, com o objetivo de facilitar a interoperabilidade transnacional de múltiplas moedas digitais de diferentes países. Quando há participação estrangeira no sistema doméstico, a mesma CBDC é usada tanto pelo pagador quanto pelo recebedor, independentemente de sua localização. Empresas ou indivíduos poderiam reter e usar CBDCs de várias jurisdições e moedas diferentes, possivelmente por meio de carteiras digitais (“wallets”) para armazenar diferentes moedas digitais.

No cenário de multi-CBDC, ocorreria uma conversão cambial: o indivíduo efetua o pagamento em uma moeda digital específica e receberia em outra. Essa conversão poderia ocorrer pela troca direta entre duas CBDCs de varejo ou pelo uso de CBDCs de atacado como ativos de liquidação seguros em mecanismo PvP - ou seja - para um mecanismo de pagamento contra pagamento (PvP), os ativos de liquidação mais seguros são aqueles que minimizam o risco de liquidação, garantindo que a troca de valores ocorra simultaneamente e de forma final. A segurança reside na eliminação do risco de que uma parte cumpra sua obrigação enquanto a outra não — para liquidar transações de varejo em moedas diferentes quanto para operações de câmbio liquidadas em dinheiro de bancos comerciais ou de bancos centrais.

Para melhor entendimento do sistema de pagamento contra pagamento, um espelho de uma realidade futura, permite compreender de uma forma mais fácil: Uma moeda digital de banco central (CBDC), como forma de dinheiro digital de banco central, pode ser o ativo de liquidação mais seguro para mecanismos PvP, pois elimina a necessidade de bancos comerciais ou intermediários para liquidar, operando diretamente na base do banco central. A liquidação seria final e sem risco de crédito ou liquidez.

            A combinação de CBDCs representa uma forma de mitigar riscos e fricções transnacionais e cambiais, ao mesmo tempo que reforça o papel do dinheiro do banco central como âncora do sistema de pagamentos e ser o ativo primordial de liquidação de mercado. No caso de um futuro dólar digital, pode fortalecer ainda mais sua posição como unidade de conta, reserva de valor e meio de pagamento frente ao mercado internacional. Como defendido por Carstens (2021), os arranjos multi-CBDC (mCBDC) podem ser preferíveis a propostas alternativas que envolvem a criação de stablecoins globais privadas, como a Diem que foi proposta pela Libra Association em 2019-2020. Ao invés de criar uma unidade de conta que compete com moedas nacionais, os arranjos mCBDC focam em projetar moedas digitais nacionais com estruturas de acesso e interoperabilidade que facilitem pagamentos entre fronteiras e moedas. Diferentes níveis de interoperabilidade dos sistemas de pagamento nos permitem agrupar potenciais arranjos de mCBDC em três modelos.

Modelo 1: Sistemas compatíveis de CBDC / Modelo 2: Sistemas interligados de CBDC / Modelo 3: Um sistema único de mCBDC. Esses modelos são ilustrações, não um guia normativo a ser seguido.

O modelo 1 prevê a interoperabilidade de sistemas separados por meio da adoção de padrões internacionais comuns, assemelhando-se aos sistemas de pagamentos transnacionais tradicionais. Padrões técnicos comuns — como formatos de mensagens, técnicas criptográficas, requisitos de dados e interfaces de usuário — reduzem o esforço operacional das instituições financeiras que participam de múltiplos sistemas. A harmonização legal, regulatória e de supervisão simplifica os processos de KYC (know your customer) e de monitoramento de transações. Os processos de KYC (Know Your Customer) são os procedimentos de identificação e verificação da identidade de um cliente para prevenir fraudes, lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Eles envolvem a coleta e análise de documentos como RG, CPF, comprovantes de endereço e selfie, além de, em alguns casos, verificação facial, biométrica e de dados financeiros para confirmar que os clientes são quem afirmam ser. Isso se aplica tanto às moedas digitais quanto a qualquer outro método de pagamento. Entretanto, sem a devida ação política necessária, alcançar um grau suficiente de compatibilidade entre sistemas nacionais de CBDC irá demorar.

O modelo 2 envolve interligações adicionais, seja por meio de uma interface técnica compartilhada ou de um mecanismo de compensação comum. Uma interface técnica compartilhada, apoiada por acordos contratuais entre os sistemas, permite que participantes de varejo ou atacado, mediante um sistema, façam pagamentos para outros em sistemas diferentes. Um mecanismo comum de compensação adota uma abordagem distinta, vinculando sistemas por meio de contas de liquidação designadas. Embora existam várias opções de interconexão, nenhuma é fácil de implementar. A história mostra que muitos projetos não entregam os benefícios esperados ou nem chegam à fase operacional, apesar de investimentos significativos (Banco Mundial, 2014).

Por fim, o modelo 3 pressupõe uma cooperação em um nível muito mais alto entre bancos centrais. Prevê uma combinação em que existe um único sistema de mCBDC que abrange várias jurisdições.Esse conceito baseia-se em um conjunto único de regras, um sistema técnico único e um conjunto único de participantes. Tal integração mais profunda permite maior funcionalidade e eficiência, mas também aumentaria os desafios de governança e controle (como, por exemplo, maior acesso pode gerar liquidação mais eficiente, mas também, por outro lado, aumenta outros riscos), além de questões de política monetária.Criar um sistema único de mCBDC equivaleria, em essência, à criação de novas estruturas multilaterais de cooperação monetária.

            Existem oportunidades e riscos associados ao uso transnacional de CBDCs. Possíveis benefícios das moedas digitais em relação aos atritos existentes nos pagamentos seriam reduzi-los nos pagamentos entre fronteiras. Embora melhorias estejam em andamento, ainda persistem atritos em muitos setores. Os pagamentos entre fronteiras sofrem com longos atrasos nas transações e podem ser particularmente custosos devido ao envolvimento de muitos intermediários em diferentes fusos horários ao longo do processo do banco correspondente. Além disso, os pagamentos transnacionais sofrem com baixa rastreabilidade e falta de transparência, causando atritos em relação às verificações de PLD/CFT — Verificações de PLD/CFT são processos usados por empresas para prevenir a lavagem de dinheiro (PLD) e o financiamento do terrorismo (CFT).

Elas envolvem a verificação de identidade dos clientes, análise de riscos, monitoramento de transações e triagem contra listas de sanções e Pessoas Politicamente Expostas (PEP). O objetivo é evitar que recursos ilícitos sejam usados para atividades terroristas ou lavados no sistema financeiro. Além disso, o declínio das relações bancárias transnacionais na última década pode deixar algumas jurisdições com o acesso inadequado ao sistema financeiro global (Rice, von Peter e Boar, 2020). A pergunta central se baseia em como as CBDCs (Moedas Digitais) poderiam reduzir as fricções existentes, o que indiretamente pode favorecer ou não, dependendo do cenário, a relevância do dólar digital internacionalmente.

Sendo assim, os três modelos conceituais de uso transnacional de CBDCs apresentados anteriormente não prescrevem mecanismos de câmbio, mas, ainda assim, cada um deles poderia, de maneiras distintas, permitir melhorias nas combinações atuais. Como observado, ao emitirem CBDCs levando em conta esses três modelos, os bancos centrais poderiam projetar desde o início sistemas interoperáveis de CBDC para pagamentos internacionais.

O modelo 1 prevê sistemas de CBDC compatíveis que poderiam oferecer um novo meio de liquidar transações entre países em moeda de banco central, aliado ao desenvolvimento de sistemas de pagamento domésticos abertos, competitivos e compatíveis, e permitindo que um número maior de bancos e instituições não bancárias tenha acesso direto ao dinheiro do banco central para liquidação. Esse modelo possibilitaria maior variedade de serviços de pagamento internacionais e multimoeda. Isso reduziria tanto a fragmentação quanto a concentração nos sistemas de pagamento atuais. Num cenário de maior demanda por um dólar digital (e menor demanda por moedas digitais estrangeiras), é possível que o dólar se unifique como meio de transação, unidade de conta e reserva de valor mais utilizado. Com tamanha notoriedade, é possível afirmar também que este é um cenário propício para que este, de fato, reduza fricções e consolide sua posição hegemônica no mundo.

O modelo 2 prevê sistemas de CBDC interligados que poderiam aproveitar essas melhorias potenciais para oferecer maior segurança. Em especial, seria possível incluir liquidação PvP por meio de interfaces técnicas entre sistemas domésticos. Novas tecnologias já permitem implementar isso de formas inovadoras — por exemplo, o projeto BoC e MAS (2019) demonstrou essa possibilidade. O projeto de 2019 entre o Bank of Canada (BoC) e a Monetary Authority of Singapore (MAS), foi uma iniciativa pioneira para testar a viabilidade da tecnologia de registro distribuído (DLT), ou blockchain, em pagamentos internacionais. O objetivo era tornar as transações transfronteiriças mais eficientes, rápidas e seguras.O projeto foi importante porque: Abordou ineficiências; Na época, os pagamentos internacionais dependiam de uma rede complexa de bancos correspondentes, o que tornava o processo lento, caro e sujeito a riscos. Validou a DLT; o experimento validou o potencial da tecnologia para modernizar os sistemas de pagamento de alta complexidade.

E serviu de base para iniciativas futuras, visto que os aprendizados do Jasper-Ubin serviram de base para outros estudos e projetos, os quais são debatidos nesse artigo sobre o dólar digital. Além disso, mecanismos comuns de compensação poderiam aumentar a eficiência, especialmente se conectados a plataformas de negociação de câmbio (FX).

Modelo 3 prevê um sistema único de mCBDC que ofereceria os mesmos avanços dos sistemas interligados, mas com nível adicional de integração. Por exemplo, todas as liquidações cambiais seriam PvP por padrão, sem necessidade de roteamento ou instruções específicas por interfaces separadas.Plataformas de negociação também poderiam ser integradas a esse sistema, o que — assumindo um bom projeto — reduziria ainda mais a complexidade, a fragmentação e a concentração nos mercados cambiais (como sugerido pelo Banco da Tailândia e pela Autoridade Monetária de Hong Kong, 2020). Modelos desse tipo foram adotados, por exemplo, nos Projetos Dunbar e Aber. Nestes, os bancos centrais emitiram conjuntamente uma CBDC usada dentro de um único sistema mCBDC.Como tanto o riyal saudita quanto o dirham dos Emirados Árabes Unidos são atrelados ao dólar americano, a CBDC emitida manteve uma taxa de câmbio fixa com ambas as moedas locais durante todo o período de teste conceitual.

Em síntese, o impacto de um dólar digital em um ambiente com múltiplas CBDCs dependerá fundamentalmente de como as escolhas de design doméstico se articulam com a cooperação internacional, definindo o acesso e a interoperabilidade. O uso transnacional de CBDCs, incluindo um dólar digital, aumenta o risco de substituição cambial, o que reduz o controle do banco central receptor sobre a liquidez doméstica e enfraquece o mecanismo de transmissão monetária. Outras preocupações incluem também a facilitação da evasão fiscal e perda de supervisão pelas autoridades domésticas, volatilidade indesejada nas taxas de câmbio e o surgimento de uma CBDC estrangeira como veículo dominante no mercado doméstico.

A análise evidencia que o desenvolvimento das moedas digitais (CBDCs) inaugura etapa da arquitetura monetária internacional, na qual o dólar digital (USD-CBDC) tende, pelo menos inicialmente no curto prazo, a reforçar a hegemonia dos Estados Unidos. Essa predominância é decorrente de fatores estruturais: a profundidade e liquidez dos mercados financeiros norte-americanos, a confiança institucional e ampla aceitação do dólar como reserva de valor e meio de troca global. Entretanto, o fortalecimento dessa posição não é isento de riscos. A digitalização do dólar amplia o alcance global da política norte-americana, mas também pode gerar efeitos de tensão financeira, substituição cambial e redução da autonomia monetária de países emergentes. Em contrapartida, os arranjos multi-CBDC (mCBDC) oferecem um caminho cooperativo, no qual a interoperabilidade e o acesso coordenado entre os bancos centrais podem reduzir fricções, aumentar a transparência e promover eficiência sistêmica sem comprometer soberanias nacionais.

Os três modelos de interoperabilidade – compatíveis, interligados e integrados – representam graus crescentes de cooperação internacional, e sua escolha determinará um equilíbrio futuro entre eficiência global e controle doméstico. Assim, a trajetória do dólar digital dependerá menos de seu desenvolvimento tecnológico e mais de sua governança internacional, da capacidade dos Estados Unidos de coordenar normas multilaterais e de se adaptar a um cenário no qual novas moedas digitais – como o euro digital e o yuan digital — buscam espaço estratégico. Em suma, o dólar digital poderá consolidar o poder financeiro norte-americano no curto prazo, mas, no longo prazo, a interdependência tecnológica monetária exigirá uma diplomacia digital monetária baseada em cooperação, transparência e padronização internacional — sob pena de transformar a hegemonia atual em uma vulnerabilidade sistêmica.

Em última instância, caberá ao Federal Reserve – Banco Central dos Estados Unidos — atuar como mediador dessa nova ordem monetária digital — articulando padrões de interoperabilidade, coordenando salvaguardas com pares internacionais e calibrando a política para que a eficiência não comprometa a estabilidade.

Portanto, em um futuro de arquiteturas de pagamento interligadas, será que a inevitável competição entre um dólar digital e seus rivais de CBDCs levará a uma nova forma de 'dolarização digital' ou forçará os bancos centrais globais a uma cooperação sem precedentes para preservar a soberania da política monetária norte-americana e garantir o prolongamento de seu império?


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